HUMAN - ACTOS CINEMATOGRÁFICOS PARA AS HUMANIDADES

Rede de Comunicação Online

terça-feira, 14 de setembro de 2010

José Saramago - Carta Pública




Carta A José Saramago
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Para onde hei-de enviar eu esta carta? Talvez incinera-la. Dar-lhe a mesma volatilidade do fumo que te levou a transpor a barreira do universo físico e experimentares em definitivo o processo plásmico das mutações. Onde as formas das existências são sempre o que nos impulsionou ou imaginámos, mas que, a barreira da conjunção nuclear e bioquímica da nossa formação terrena, não nos deixou medir ou aceitar.
“O Universo não tem notícia de nós”. Afirmaste. E tanto que me apetece continuar a aperfeiçoar contigo a chave desta exaltação do espírito. Provavelmente, o Universo não tem notícia de nós, porque não precisa de a ter. Porque somos uma óbvia consequência da sua vontade, uma obra das suas capacidades criativas, que se encontra ainda em evidente estágio de ensaio. Cujo percurso ou nítido ateliê se pode assumir como o cerne do segredo que protege as áreas ou as pedras mais preciosas, do fenómeno inexplicável da nossa Existência.
Talvez que, seja o próprio Universo a ter de nos dar notícia de nós mesmos. E se ainda o não soubemos admitir, se deva isso ao facto de mergulharmos persistentemente na tentativa de encontrar a explicação, em fossos erróneos do caminho, que podem ser a causa e a expressão do padecimento incomensurável a que o Homem se obriga e sujeita, Tendo mesmo assim na sua frente, todas as possibilidades e coordenadas que nos levem ao enorme estágio da habitabilidade e da convivência, interceptado pelos receptores da tua sensibilidade, que nos traduziste através do gigantesco código de caracteres, depositados por fim, nas bibliotecas do Mundo. Como passo ou acto decisivo da nossa auto-interpretação e que certamente detêm muito ou quase tudo das definições do idioma que permitirá levar notícia de nós ao Universo.
O Universo, é pai e mãe ao mesmo tempo. Se há Seres ou estruturas uni-sexuais, como nos primitivos tempos das estruturas de vida unicelular, o Universo é um desses Seres.
Se ao fenómeno magistral da paternidade, o nascimento do filho produz a alegria, a elevação da poesia que engrandece e estimula o pai ao mais alto das suas capacidades, não precisará o pai de ter notícia do filho que fez, mais do que a certeza de o ver respirar e viver.
As causas do desacerto de entendimento da Humanidade, só muito recentemente começaram a ser escrutinadas. Foram sentidas e interceptadas desde que temos noção da existência, mas o tempo é o segredo profundo, intransponível para já, da sua estrutura, é o grande mandatário do aperfeiçoamento e do Juízo sobre a mole humana de que temos conhecimento. Entendamos esta fase do percurso como caminho que não podíamos deixar de percorrer. O Universo não precisa de ter notícia de nós, porque indubitavelmente somos estrutura da sua própria estrutura. Ou seja: Um só corpo. Mas se precisar de haver notícia, esta ocorrerá seguramente. Apenas quando o Homem se elucidar plenamente acerca da sua condição, debelar entre si as fissuras que interditam o contacto, e souber por fim, projectar no espaço uma enorme alegria pelo facto de existir e de se entender. Então sim, o espírito se encarregará de realizar o que ainda nos falta. Tu fizeste a tua parte. Tu sozinho, realizaste mais do que fez metade de toda a Humanidade desde que se conhece. Assim esta o percebesse.
Sentá-mo-nos por uma única vez à mesma mesa. Trocámos palavras, comunicámos pelo olhar, esse canal da elevação dos contactos e da certeza das intenções. Falei de televisão e de Mértola, perguntaste-me pelo Cláudio Torres, falo agora do abraço que lhe mandaste e que lhe entreguei naturalmente, com os braços. Não pude no entanto cumprir, por culpa das forças retrógradas que sempre combateste, fora e dentro das fileiras, o teu convite, de que te aparecesse em Lanzarote com uma câmara, para iniciarmos a revelação, sobre o que será no futuro a nossa Península Ibérica.
Que poderei eu acrescentar mais nesta fase do diálogo? A não ser a convicção de que este irá progredir por todo o futuro. Eram 11.30h em Moreanes, quando alguma coisa me diz que tenho de sair do meu ateliê de edição e subir ao cerro mais alto, dos 3 que protegem a minha aldeia. Ali, todos os pensamentos vão em tua direcção. E de repente, uma ave solitária fica por cima de mim, imóvel. Batia as asas para se manter no ar, mas persistia em não seguir para sítio algum. Quando achou que era tempo, desistiu daquela parcial imobilidade e eu desci do monte. Entrei em casa em cima da hora das notícias. Liguei a televisão, abrem as notícias, e antes que o locutor dissesse alguma coisa, o rodapé informava em formato maior do que o costume, o falecimento do teu corpo.
Estava explicado o impacto de há uma hora e trinta atrás.
Antes da televisão, a Ave que me enviaste, entregara-me sábia, o teu recado.
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Londres, 8 de Julho de 2010.
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Direitos Protegidos – Germano Vaz – SPA-Sociedade Portuguesa de Autores. 9/2010.

sábado, 11 de setembro de 2010

Manoel de Oliveira - Paineis de S. Vicente No Festival de Veneza.



Realizador português mostrou a sua nova curta-metragem sobre a enigmática obra do século XV na secção paralela Horizontes
Com o filme Painéis de São Vicente de Fora, Visão Poética, uma curta-metragem de 16 minutos, encomenda da Fundação de Serralves, que mostrou na secção paralela Horizontes do Festival de Veneza, Manoel de Oliveira faz uma reflexão sobre esta enigmática obra do século XV exposta no Museu Nacional de Arte Antiga.
"A duração não é importante nos filmes. O importante é o argumento. Já cheguei a fazer filmes com mais de quatro horas, como Le Soulier de Satin. Nesta curta- -metragem, que não é um documentário, dei importância à interpretação dos Painéis, encontrando inspiração na actual crise mundial e na crescente desumaniza- ção em que vivemos", declarou Oliveira ao DN.
Para Manoel de Oliveira, que foi aplaudido durante mais de dez minutos antes da projecção, e apresentado por Marco Müller, o director do certame, "o grande mistério destes Painéis reside em não se saber ao certo quem são as personagens nele representadas, porque, se algumas são reconhecíveis, muitas outras não o são".
São Vicente, interpretado por Ricardo Trepa, e o infante D. Henrique, por Diogo Dória, "partilham de um mesmo desejo de justiça, fraternidade e paz entre os povos, fora de questões relacionadas com raça e religião".
Segundo Oliveira, "os Painéis de São Vicente foram desde sempre reconhecidos como a mais importante representação da sociedade portuguesa da época, quando os navegadores portugueses viajavam pelos oceanos dos cinco continentes, desbravando o planeta e dando a conhecer novos lugares e povos".
"Os Descobrimentos, iniciados por Portugal, permitiram um conhecimento mais completo do mundo, que é a casa de todos nós mas que então permanecia ainda uma incógnita para a humanidade que o habitava", frisou o realizador. "O homem sempre fez tudo para conhecer e dominar o mundo e os seus semelhantes. Mas somente os animais não têm a perversidade da humanidade". E acrescentou, numa nota do seu conhecido pessimismo. "O Velho do Restelo não era pessimista, apenas previu o futuro."
Referindo-se à cena em que as figuras dos Painéis de São Vicente surgem fora do quadro, disse Oliveira: "Hoje talvez seja possível para as personagens conseguirem sair dos Painéis. Mas não há nada de novo no cinema."